22.03.23

Cidadania Global: formação humana integral nos colégios da Companhia de Jesus na América Latina

<strong>Cidadania Global: formação humana integral nos colégios da Companhia de Jesus na América Latina</strong>

Exercício de reflexão em espírito de oração para um pensamento crítico em função da transformação social.

Nos últimos anos, os termos cidadania global e formação integral ganharam visibilidade dentro dos espaços de diálogo sobre a educação. No exercício de aproximação dessa realidade com a estatística, é possível dizer que os dois termos estão na moda. O que isso pode significar do ponto de vista da relevância e profundidade para a educação? Quais os riscos que a moda pode trazer? Qual o papel da escola e dos professores nesse diálogo?

Essas perguntas podem ajudar a situar os dois termos dentro de uma perspectiva mais ampla e, assim, levar ao exercício da experiência, onde os diversos sujeitos ocupam os espaços dialógicos e avançam para uma compreensão da realidade de forma mais profunda.

Do ponto de vista das características, um dos atributos da moda é a alta frequência da ocorrência de um fenômeno; é estar na “crista da onda” das narrativas. Por isso, traz algumas predisposições para o confronto entre o que pode ser considerado hegemônico e o que ainda está para surgir na periferia. A alta ocorrência não deve esconder os novos elementos periféricos, sob o risco de uma leitura meramente instrumental dos fenômenos.

Nessa perspectiva, para a Companhia de Jesus, tratar sobre formação integral e cidadania global sempre esteve na base da proposta formativa dos colégios. É um exercício muito mais amplo e que diz respeito à educação jesuíta desde a sua origem, onde o local, regional e global se retroalimentam mutuamente e formam uma rede de diálogo e colaboração.

A formação integral hoje, de acordo com a tradição viva dos colégios jesuítas

Desde o princípio, o trabalho educativo nos colégios jesuítas tem na formação integral um eixo característico e, tanto do ponto de vista conceitual quanto prático, é possível perceber a evolução na experiência dessa formação. Em 1548, Inácio de Loyola iniciou o apostolado educativo na Companhia de Jesus com um sistema intelectualmente rigoroso e criativo, aberto para estudantes de diferentes classes sociais e orientações religiosas, que influenciou e foi influenciado pela vida intelectual, política, social e cultural da época.

Com o passar do tempo, essas novidades foram adquirindo novos desafios e buscando novas formas para continuar ofertando uma formação humanista de excelência, considerando o ser humano como um todo e em constante vinculação com o seu meio.

Um olhar sobre a Ratio Studiorum e outros documentos da Companhia de Jesus sobre o apostolado educativo, como Características da Educação da Companhia de Jesus, Pedagogia Inaciana: uma proposta prática, Acordos Finais JESEDU-Rio 2017, Colégios Jesuítas: uma tradição viva etc., mostra a evolução e atualização da experiência da formação integral e, nesse último, são apresentados como identificadores globais, traços que marcam os colégios jesuítas na atualidade.

A base desses identificadores encontra um lugar na formulação: atuar como um corpo universal com uma missão universal. São dez compromissos que foram formulados a partir do contexto, desafios e prioridades para o trabalho educativo nos colégios da Companhia de Jesus: os colégios Jesuítas estão comprometidos em ser católicos e em oferecer uma profunda formação na fé em diálogo com outras religiões e visões de mundo; em criar um ambiente seguro e sadio para todos; com a cidadania global; com o cuidado de toda a criação; com a justiça; em ser acessíveis a todos; com a interculturalidade; em ser uma rede global a serviço da missão; com a excelência humana e com a aprendizagem para toda a vida.

Tais identificadores são compromissos com a formação da pessoa toda e, para isso, envolvem as dimensões cognitiva, espiritual, socioemocional, corporal, comunicativa, ética, sociopolítica e estética. É um processo contínuo, permanente e sistêmico no diálogo com informações, conhecimento, habilidades e valores, tudo mediado pelas experiências de contato com a realidade.

A formação integral e a cidadania global nos colégios da Companhia de Jesus

A presença de colégios no apostolado da Companhia de Jesus remonta ao início da própria ordem religiosa. Mesmo que não fossem considerados nos planos iniciais de Santo Inácio, os colégios passaram a ter uma grande importância como instrumento para a ação apostólica dos jesuítas.

Foi em 1548 que Santo Inácio abriu o que é considerado o primeiro colégio clássico da Companhia: Colégio de Mesina. Com um corpo docente formado por jesuítas de países como Itália, Espanha, França e Alemanha, já era possível perceber uma experiência intercultural a partir da origem dos próprios professores, junta-se a isso o uso do método parisiense, que foi experimentado por Santo Inácio e os primeiros companheiros nos seus anos de estudos em Paris.

Com essa realidade, algumas características contribuíram para o êxito inicial do trabalho realizado nos colégios: não cobravam pelos estudos; admitiam crianças de todas as classes sociais; conciliavam estudos de humanidades, filosofia-ciência e teologia; turmas separadas por níveis e cada uma com seu respectivo professor; insistência na assimilação ativa de ideias e práticas; um programa religioso claro para além de práticas piedosas e mais voltado para a assimilação de valores éticos e religiosos; caminhavam para a criação de uma rede internacional de colégios; tentavam influenciar os estudantes por meio do exemplo e não de palavras.

Essas características ajudam a ver o acento na formação integral e a novidade que representou o trabalho educativo dos jesuítas. Três anos depois da fundação do Colégio de Mesina já havia um plano de estudos para todos os novos colégios e a partir desse plano de estudo, e com a documentação das experiências realizadas em diferentes lugares, foi sendo construída o que veio a ser a Ratio Studiorum, que em 1599 teve a sua edição definitiva.

Assim, a formação integral é parte do trabalho educativo nos colégios jesuítas desde o princípio, e a cidadania global é um elemento dessa formação, tendo na própria Ratio Studiorum um elemento facilitador para o que hoje chamamos de rede. Esse é um dos traços característicos da educação para a cidadania global.

A cidadania global como parte da formação humana integral

O desafio de educar para a cidadania global tem raízes na tradição viva que caracteriza o apostolado educativo da Companhia de Jesus desde o início e que se mantém ao longo de quase cinco séculos, sendo renovado e atualizado constantemente para responder aos desafios de cada tempo.

O Superior Geral da Companhia de Jesus, Pe. Arturo Sosa, S.J., no seu discurso para os delegados presentes no congresso JESEDU-Rio 2017, formulou o convite para a reinvenção da educação jesuíta a partir do horizonte da excelência humana, que passa pela formação de homens e mulheres conscientes, competentes, compassivos e comprometidos (4C`s Pe. Kolvenbach S.J.) – para e como os demais (Pe. Pedro Arrupe S.J.) – e da excelência acadêmica, situada no contexto de uma formação humana integral. E para alcançar essa formação humana integral é preciso empreender o diálogo com o mundo dentro de um contexto de interculturalidade e universalidade.

Tomando como referência a imagem do poliedro, proposta pelo Papa Francisco, para falar da globalização: “agrada-me a figura geométrica do poliedro porque é uma, mas tem faces diferentes”, o Pe. Arturo Sosa, S.J., usou o termo universalização “entendida como crescimento da interação entre grupos humanos, culturalmente diversos, capazes de compartilhar uma visão comum dos interesses de toda a humanidade” para chamar atenção para o caráter global da formação humana integral.

O ideal, segundo o Pe. Arturo Sosa S.J., é “que cada ser humano, ou cada povo, seja capaz de sentir-se parte da humanidade, tornando-se consciente de sua própria cultura (inculturação), sem absolutizá-la, criticamente, reconhecendo prazerosamente a existência de outros seres humanos possuidores de culturas diversas (multiculturalidade) e estabelecendo relações estreitas com eles, enriquecendo-se com a variedade de culturas, entre as quais se encontra a sua própria cultura (interculturalidade).”

Com essa perspectiva de interação cultural e tendo como pano de fundo a formação humana integral, Pe. Arturo Sosa S.J. apresentou alguns desafios para os educadores e instituições educativas da Companhia de Jesus: que as instituições educativas sejam espaços de pesquisa pedagógica e verdadeiros laboratórios de inovação didática; educação para a justiça (se aproximar dos mais pobres e marginalizados, formação de consciência crítica e inteligente diante de processos sociais injustos, uma atitude dialogal que permita encontrar soluções); respeito e cuidado com a casa comum; desenvolvimento de uma cultura de proteção de menores de idade; formação religiosa que abra à dimensão transcendental da vida e formação para uma visão intercultural do mundo, na qual todos os seres humanos são possuidores de uma cidadania global.

São desafios que situam o apostolado educativo no contexto dos grandes horizontes que a educação tem hoje, em vista de um futuro anunciado cada vez mais complexo, e que concentram forças na formação integral ao colocar o trabalho desenvolvido nos colégios como parte integrante dos esforços para a formação de homens e mulheres capazes de dialogar com o mundo de forma autônoma, com capacidade de discernimento e implicados nos processos de mudanças por um mundo mais justo, democrático e em paz.

Na busca por aprofundar a perspectiva integral da educação jesuíta, em julho de 2021 foi realizado o II Colóquio JESEDU-Global, e na sua declaração final é possível perceber a força do compromisso institucional com a formação integral, tendo a profundidade e a cidadania global como marcos.

No discurso de abertura do colóquio o Pe. Arturo Sosa, S.J., apresentou a seguinte pergunta: “que tipo de educação para o presente e para o futuro nós precisamos, de modo que nossos estudantes sejam educados como pessoas para e com os demais, comprometidas com a construção de um novo mundo; um mundo que nos permite ver novas todas as coisas em Cristo, tal como Inácio de Loyola aprendeu?”. A partir dessa questão, os participantes concluíram que “devemos educar para um futuro cheio de esperança, educando para a profundidade e para a cidadania global, na fé e reconciliação no contexto da nossa perspectiva integral da educação” (Declaração Final II Colóquio JESEDU-Global 2021).

Como tudo isso se realiza no concreto das instituições educativas da Companhia de Jesus? Em primeiro lugar através da educação para a fé (reconhecendo o mundo cada vez mais secular, multicultural e multirreligioso); educando para a profundidade, em um mundo das simplificações e da superfície; educando para a reconciliação, num mundo cada vez mais fragmentado e polarizado. Por último, educando para a cidadania global, onde o cuidar da criação e o compromisso com os marginalizados conecta-se à busca por um futuro cheio de esperança.

Nessa perspectiva, o colóquio avançou na compreensão e atualização dos 4c`s e definiu como objetivo do apostolado educativo da Companhia de Jesus educar para a excelência humana que conduza a um futuro cheio de esperança: pessoas compassivas, competentes, conscientes e comprometidas, com definições muito mais amplas. Ser competente implica em ser uma pessoa de profundidade e discernimento; ser compassivo significa ser agente de reconciliação; pessoa consciente é uma pessoa de fé, disposta a dialogar com os outros, respeitando e apreciando as diferentes tradições religiosas e visões de mundo; pessoa comprometida é um cidadão global, que busca aprofundar sua consciência do seu lugar e responsabilidade, local e global, no mundo cada vez mais conectado.

Características da Educação para a Cidadania Global Inaciana

A experiência dos ciclos de congressos e colóquios promovidos pela Companhia para tratar sobre o apostolado educativo, com os apelos do Pe. Arturo Sosa S.J., mobilizaram as diferentes estruturas de educação da Companhia ao redor do mundo na busca por projetos concretos de educação para a cidadania global. Como parte dessa mobilização, a Federação Latino Americana de Colégios da Companhia de Jesus elaborou o projeto Educação para a Cidadania Global, para incentivar a reflexão e gerar uma proposta de formação e avaliação da educação para a cidadania global nos colégios latino-americanos.

Na perspectiva inaciana, o cidadão global é quem procura aprofundar, continuamente, a consciência de seu lugar e responsabilidade local e global; que usa e promove espaços de diálogo na busca por soluções coletivas que reflitam na melhoria dos processos sociais, econômicos, políticos, entre outros; é alguém que atua no local, mas consciente das conexões com o regional e global, dentro de uma perspectiva de rede; é solidário com outros na busca de um planeta sustentável, numa missão de reconciliação e justiça.

Desse modo, a formação para a cidadania global não é um programa ou um tema complementar no currículo e sim é um mandato que permeia os valores centrais, o currículo e a cultura de toda a escola. É uma dimensão constitutiva da abordagem multidisciplinar da educação e que atravessa as áreas do currículo, estrutura/recursos e as relações com as famílias e comunidades locais, conforme estruturado no Sistema de Qualidade na Gestão Escolar – SQGE, projeto em desenvolvimento nos colégios latino-americanos.

Cidadania Global em um exercício de reflexão

A formação humana integral é a base onde os colégios da Companhia de Jesus na América Latina situam a cidadania global, ou seja, é a partir do olhar e da experiência de formação da pessoa como um todo que o chamado para o diálogo local, regional e global se conecta com os diferentes campos de experiências formativas. E mais do que um olhar regional, as perspectivas são sempre na direção da grande rede que conecta a todos.

A educação para a cidadania global deve possibilitar que estudantes, pais, professores e gestores façam o exercício de reflexão em espírito de oração, que escutem a Deus e a realidade; que sejam e estejam abertos para o diálogo, pensem criticamente e empenhem seus talentos, tempos e energias em função da transformação social. Tudo isso marcado pelo trabalho em rede, onde as comunidades se conectam, compartilham experiências, partilham recursos, trabalham projetos comuns e formam uma comunidade global.

Nesse sentido, a plataforma Educate Magis é um exemplo concreto de uma ferramenta disponibilizada pela Rede Global de Colégios Jesuítas para o encontro de educadores dos colégios jesuítas espalhados pelo mundo inteiro.

Assim, a educação para a cidadania global “reúne a noção de que a cidadania, para além de uma consciência do cidadão quanto ao lugar, ao papel, aos direitos e responsabilidades que possui na sociedade em que vive, implica o reconhecimento de que sua esfera de consciência e atuação não se limita ao local, mas se amplia para o mundo, pois tudo está conectado” (PEC-RJE. P.69. 2021).

Autor:

O Ir. Raimundo Barros, S.J., é pedagogo, especialista em Gestão de Pessoas e Gestão de Projetos e Mestre em Administração. Atualmente, é Secretário e Delegado para Educação da Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina e Caribe – CPAL e Presidente da Federação Latino-americana dos Colégios da Companhia de Jesus – FLACSI.