Cidadania Global: formação humana integral nos colégios da Companhia de Jesus na América Latina
Exercício de reflexão em espírito de oração para um pensamento crítico em função da transformação social.
Nos últimos anos, os termos cidadania global e formação integral ganharam visibilidade dentro dos espaços de diálogo sobre a educação. No exercício de aproximação dessa realidade com a estatística, é possível dizer que os dois termos estão na moda. O que isso pode significar do ponto de vista da relevância e profundidade para a educação? Quais os riscos que a moda pode trazer? Qual o papel da escola e dos professores nesse diálogo?
Essas perguntas podem ajudar a situar os dois termos dentro de uma perspectiva mais ampla e, assim, levar ao exercício da experiência, onde os diversos sujeitos ocupam os espaços dialógicos e avançam para uma compreensão da realidade de forma mais profunda.
Do ponto de vista das características, um dos atributos da moda é a alta frequência da ocorrência de um fenômeno; é estar na “crista da onda” das narrativas. Por isso, traz algumas predisposições para o confronto entre o que pode ser considerado hegemônico e o que ainda está para surgir na periferia. A alta ocorrência não deve esconder os novos elementos periféricos, sob o risco de uma leitura meramente instrumental dos fenômenos.
Nessa perspectiva, para a Companhia de Jesus, tratar sobre formação integral e cidadania global sempre esteve na base da proposta formativa dos colégios. É um exercício muito mais amplo e que diz respeito à educação jesuíta desde a sua origem, onde o local, regional e global se retroalimentam mutuamente e formam uma rede de diálogo e colaboração.
A formação integral hoje, de acordo com a tradição viva dos colégios jesuítas
Desde o princípio, o trabalho educativo nos colégios jesuítas tem na formação integral um eixo característico e, tanto do ponto de vista conceitual quanto prático, é possível perceber a evolução na experiência dessa formação. Em 1548, Inácio de Loyola iniciou o apostolado educativo na Companhia de Jesus com um sistema intelectualmente rigoroso e criativo, aberto para estudantes de diferentes classes sociais e orientações religiosas, que influenciou e foi influenciado pela vida intelectual, política, social e cultural da época.
Com o passar do tempo, essas novidades foram adquirindo novos desafios e buscando novas formas para continuar ofertando uma formação humanista de excelência, considerando o ser humano como um todo e em constante vinculação com o seu meio.
Um olhar sobre a Ratio Studiorum e outros documentos da Companhia de Jesus sobre o apostolado educativo, como Características da Educação da Companhia de Jesus, Pedagogia Inaciana: uma proposta prática, Acordos Finais JESEDU-Rio 2017, Colégios Jesuítas: uma tradição viva etc., mostra a evolução e atualização da experiência da formação integral e, nesse último, são apresentados como identificadores globais, traços que marcam os colégios jesuítas na atualidade.
A base desses identificadores encontra um lugar na formulação: atuar como um corpo universal com uma missão universal. São dez compromissos que foram formulados a partir do contexto, desafios e prioridades para o trabalho educativo nos colégios da Companhia de Jesus: os colégios Jesuítas estão comprometidos em ser católicos e em oferecer uma profunda formação na fé em diálogo com outras religiões e visões de mundo; em criar um ambiente seguro e sadio para todos; com a cidadania global; com o cuidado de toda a criação; com a justiça; em ser acessíveis a todos; com a interculturalidade; em ser uma rede global a serviço da missão; com a excelência humana e com a aprendizagem para toda a vida.
Tais identificadores são compromissos com a formação da pessoa toda e, para isso, envolvem as dimensões cognitiva, espiritual, socioemocional, corporal, comunicativa, ética, sociopolítica e estética. É um processo contínuo, permanente e sistêmico no diálogo com informações, conhecimento, habilidades e valores, tudo mediado pelas experiências de contato com a realidade.
A formação integral e a cidadania global nos colégios da Companhia de Jesus
A presença de colégios no apostolado da Companhia de Jesus remonta ao início da própria ordem religiosa. Mesmo que não fossem considerados nos planos iniciais de Santo Inácio, os colégios passaram a ter uma grande importância como instrumento para a ação apostólica dos jesuítas.
Foi em 1548 que Santo Inácio abriu o que é considerado o primeiro colégio clássico da Companhia: Colégio de Mesina. Com um corpo docente formado por jesuítas de países como Itália, Espanha, França e Alemanha, já era possível perceber uma experiência intercultural a partir da origem dos próprios professores, junta-se a isso o uso do método parisiense, que foi experimentado por Santo Inácio e os primeiros companheiros nos seus anos de estudos em Paris.
Com essa realidade, algumas características contribuíram para o êxito inicial do trabalho realizado nos colégios: não cobravam pelos estudos; admitiam crianças de todas as classes sociais; conciliavam estudos de humanidades, filosofia-ciência e teologia; turmas separadas por níveis e cada uma com seu respectivo professor; insistência na assimilação ativa de ideias e práticas; um programa religioso claro para além de práticas piedosas e mais voltado para a assimilação de valores éticos e religiosos; caminhavam para a criação de uma rede internacional de colégios; tentavam influenciar os estudantes por meio do exemplo e não de palavras.
Essas características ajudam a ver o acento na formação integral e a novidade que representou o trabalho educativo dos jesuítas. Três anos depois da fundação do Colégio de Mesina já havia um plano de estudos para todos os novos colégios e a partir desse plano de estudo, e com a documentação das experiências realizadas em diferentes lugares, foi sendo construída o que veio a ser a Ratio Studiorum, que em 1599 teve a sua edição definitiva.
Assim, a formação integral é parte do trabalho educativo nos colégios jesuítas desde o princípio, e a cidadania global é um elemento dessa formação, tendo na própria Ratio Studiorum um elemento facilitador para o que hoje chamamos de rede. Esse é um dos traços característicos da educação para a cidadania global.
A cidadania global como parte da formação humana integral
O desafio de educar para a cidadania global tem raízes na tradição viva que caracteriza o apostolado educativo da Companhia de Jesus desde o início e que se mantém ao longo de quase cinco séculos, sendo renovado e atualizado constantemente para responder aos desafios de cada tempo.
O Superior Geral da Companhia de Jesus, Pe. Arturo Sosa, S.J., no seu discurso para os delegados presentes no congresso JESEDU-Rio 2017, formulou o convite para a reinvenção da educação jesuíta a partir do horizonte da excelência humana, que passa pela formação de homens e mulheres conscientes, competentes, compassivos e comprometidos (4C`s Pe. Kolvenbach S.J.) – para e como os demais (Pe. Pedro Arrupe S.J.) – e da excelência acadêmica, situada no contexto de uma formação humana integral. E para alcançar essa formação humana integral é preciso empreender o diálogo com o mundo dentro de um contexto de interculturalidade e universalidade.
Tomando como referência a imagem do poliedro, proposta pelo Papa Francisco, para falar da globalização: “agrada-me a figura geométrica do poliedro porque é uma, mas tem faces diferentes”, o Pe. Arturo Sosa, S.J., usou o termo universalização “entendida como crescimento da interação entre grupos humanos, culturalmente diversos, capazes de compartilhar uma visão comum dos interesses de toda a humanidade” para chamar atenção para o caráter global da formação humana integral.
O ideal, segundo o Pe. Arturo Sosa S.J., é “que cada ser humano, ou cada povo, seja capaz de sentir-se parte da humanidade, tornando-se consciente de sua própria cultura (inculturação), sem absolutizá-la, criticamente, reconhecendo prazerosamente a existência de outros seres humanos possuidores de culturas diversas (multiculturalidade) e estabelecendo relações estreitas com eles, enriquecendo-se com a variedade de culturas, entre as quais se encontra a sua própria cultura (interculturalidade).”
Com essa perspectiva de interação cultural e tendo como pano de fundo a formação humana integral, Pe. Arturo Sosa S.J. apresentou alguns desafios para os educadores e instituições educativas da Companhia de Jesus: que as instituições educativas sejam espaços de pesquisa pedagógica e verdadeiros laboratórios de inovação didática; educação para a justiça (se aproximar dos mais pobres e marginalizados, formação de consciência crítica e inteligente diante de processos sociais injustos, uma atitude dialogal que permita encontrar soluções); respeito e cuidado com a casa comum; desenvolvimento de uma cultura de proteção de menores de idade; formação religiosa que abra à dimensão transcendental da vida e formação para uma visão intercultural do mundo, na qual todos os seres humanos são possuidores de uma cidadania global.
São desafios que situam o apostolado educativo no contexto dos grandes horizontes que a educação tem hoje, em vista de um futuro anunciado cada vez mais complexo, e que concentram forças na formação integral ao colocar o trabalho desenvolvido nos colégios como parte integrante dos esforços para a formação de homens e mulheres capazes de dialogar com o mundo de forma autônoma, com capacidade de discernimento e implicados nos processos de mudanças por um mundo mais justo, democrático e em paz.
Na busca por aprofundar a perspectiva integral da educação jesuíta, em julho de 2021 foi realizado o II Colóquio JESEDU-Global, e na sua declaração final é possível perceber a força do compromisso institucional com a formação integral, tendo a profundidade e a cidadania global como marcos.
No discurso de abertura do colóquio o Pe. Arturo Sosa, S.J., apresentou a seguinte pergunta: “que tipo de educação para o presente e para o futuro nós precisamos, de modo que nossos estudantes sejam educados como pessoas para e com os demais, comprometidas com a construção de um novo mundo; um mundo que nos permite ver novas todas as coisas em Cristo, tal como Inácio de Loyola aprendeu?”. A partir dessa questão, os participantes concluíram que “devemos educar para um futuro cheio de esperança, educando para a profundidade e para a cidadania global, na fé e reconciliação no contexto da nossa perspectiva integral da educação” (Declaração Final II Colóquio JESEDU-Global 2021).
Como tudo isso se realiza no concreto das instituições educativas da Companhia de Jesus? Em primeiro lugar através da educação para a fé (reconhecendo o mundo cada vez mais secular, multicultural e multirreligioso); educando para a profundidade, em um mundo das simplificações e da superfície; educando para a reconciliação, num mundo cada vez mais fragmentado e polarizado. Por último, educando para a cidadania global, onde o cuidar da criação e o compromisso com os marginalizados conecta-se à busca por um futuro cheio de esperança.
Nessa perspectiva, o colóquio avançou na compreensão e atualização dos 4c`s e definiu como objetivo do apostolado educativo da Companhia de Jesus educar para a excelência humana que conduza a um futuro cheio de esperança: pessoas compassivas, competentes, conscientes e comprometidas, com definições muito mais amplas. Ser competente implica em ser uma pessoa de profundidade e discernimento; ser compassivo significa ser agente de reconciliação; pessoa consciente é uma pessoa de fé, disposta a dialogar com os outros, respeitando e apreciando as diferentes tradições religiosas e visões de mundo; pessoa comprometida é um cidadão global, que busca aprofundar sua consciência do seu lugar e responsabilidade, local e global, no mundo cada vez mais conectado.
Características da Educação para a Cidadania Global Inaciana
A experiência dos ciclos de congressos e colóquios promovidos pela Companhia para tratar sobre o apostolado educativo, com os apelos do Pe. Arturo Sosa S.J., mobilizaram as diferentes estruturas de educação da Companhia ao redor do mundo na busca por projetos concretos de educação para a cidadania global. Como parte dessa mobilização, a Federação Latino Americana de Colégios da Companhia de Jesus elaborou o projeto Educação para a Cidadania Global, para incentivar a reflexão e gerar uma proposta de formação e avaliação da educação para a cidadania global nos colégios latino-americanos.
Na perspectiva inaciana, o cidadão global é quem procura aprofundar, continuamente, a consciência de seu lugar e responsabilidade local e global; que usa e promove espaços de diálogo na busca por soluções coletivas que reflitam na melhoria dos processos sociais, econômicos, políticos, entre outros; é alguém que atua no local, mas consciente das conexões com o regional e global, dentro de uma perspectiva de rede; é solidário com outros na busca de um planeta sustentável, numa missão de reconciliação e justiça.
Desse modo, a formação para a cidadania global não é um programa ou um tema complementar no currículo e sim é um mandato que permeia os valores centrais, o currículo e a cultura de toda a escola. É uma dimensão constitutiva da abordagem multidisciplinar da educação e que atravessa as áreas do currículo, estrutura/recursos e as relações com as famílias e comunidades locais, conforme estruturado no Sistema de Qualidade na Gestão Escolar – SQGE, projeto em desenvolvimento nos colégios latino-americanos.
Cidadania Global em um exercício de reflexão
A formação humana integral é a base onde os colégios da Companhia de Jesus na América Latina situam a cidadania global, ou seja, é a partir do olhar e da experiência de formação da pessoa como um todo que o chamado para o diálogo local, regional e global se conecta com os diferentes campos de experiências formativas. E mais do que um olhar regional, as perspectivas são sempre na direção da grande rede que conecta a todos.
A educação para a cidadania global deve possibilitar que estudantes, pais, professores e gestores façam o exercício de reflexão em espírito de oração, que escutem a Deus e a realidade; que sejam e estejam abertos para o diálogo, pensem criticamente e empenhem seus talentos, tempos e energias em função da transformação social. Tudo isso marcado pelo trabalho em rede, onde as comunidades se conectam, compartilham experiências, partilham recursos, trabalham projetos comuns e formam uma comunidade global.
Nesse sentido, a plataforma Educate Magis é um exemplo concreto de uma ferramenta disponibilizada pela Rede Global de Colégios Jesuítas para o encontro de educadores dos colégios jesuítas espalhados pelo mundo inteiro.
Assim, a educação para a cidadania global “reúne a noção de que a cidadania, para além de uma consciência do cidadão quanto ao lugar, ao papel, aos direitos e responsabilidades que possui na sociedade em que vive, implica o reconhecimento de que sua esfera de consciência e atuação não se limita ao local, mas se amplia para o mundo, pois tudo está conectado” (PEC-RJE. P.69. 2021).
Autor:
O Ir. Raimundo Barros, S.J., é pedagogo, especialista em Gestão de Pessoas e Gestão de Projetos e Mestre em Administração. Atualmente, é Secretário e Delegado para Educação da Conferência dos Provinciais Jesuítas da América Latina e Caribe – CPAL e Presidente da Federação Latino-americana dos Colégios da Companhia de Jesus – FLACSI.